
Naiana Andrade - Agência Pública
Durante décadas, Bernardino Batista dos Santos era considerado o “santo padre” pela comunidade onde era pároco, em Belo Horizonte. Em 2013, uma fotografia dele, então com 65 anos, estampava a página de um blog, que trazia fotos de grandes personagens da cidade e locais da capital mineira. Mas, bastou uma palavra – “Pedófilo!” – escrita por um usuário anônimo sete anos depois da postagem, para que a visão que as pessoas tinham de Bernardino começasse a ruir. A denúncia, que parecia isolada, trouxe um rastro de sofrimento encoberto por silêncio, medo e omissão institucional.
Hoje, ao menos sete mulheres – abusadas na infância, entre os 3 e 11 anos – romperam o silêncio e contaram à Agência Pública, com exclusividade, como suas vidas foram impactadas. Os abusos teriam acontecido em diferentes cidades mineiras, principalmente em Tiros (MG), na região Noroeste, onde uma investigação policial reuniu dezenas de depoimentos e provas contra o sacerdote.
Em 2023, o padre Bernardino Batista dos Santos foi indiciado por estupro de vulnerável. Desde então, aguarda julgamento em casa, monitorado por tornozeleira eletrônica. A investigação conduzida pela Polícia Civil de Minas Gerais aponta para uma possível série de abusos que se estenderam por mais de quatro décadas, entre 1975 e 2016. O número estimado de vítimas ultraa 50.
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Apesar da gravidade das acusações, a primeira resposta institucional só ocorreu em 2021, quando a Arquidiocese de Belo Horizonte anunciou que, por ordem do Vaticano, o padre teria sido afastado de todas as atividades sacerdotais. No entanto, em 2024, o nome de Bernardino ainda constava no catálogo oficial da arquidiocese como capelão da Penitenciária Feminina do Horto, em Belo Horizonte. Procurada pela reportagem, a arquidiocese negou a informação, alegando que o documento ado pelas vítimas estava desatualizado:
“Bernardino Batista dos Santos está afastado do exercício do ofício sacerdotal desde o dia 18 de novembro de 2021. A decisão, que teve caráter definitivo com a confirmação pelo Vaticano, proíbe o referido senhor de exercer quaisquer funções vinculadas ao sacerdócio católico.”
“SANTO DO PARAÍSO”
Diante das omissões e da morosidade das autoridades religiosas, vítimas e familiares decidiram se organizar. Criaram o perfil no Instagram “Vítimas do Santo do Paraíso” – referência ao Bairro Paraíso, na Região Leste de Belo Horizonte, onde o padre exerceu suas funções religiosas por mais de 30 anos.
O caso poderia ter sido enterrado junto às primeiras denúncias, se não fosse uma descoberta feita pelas próprias vítimas, hoje adultas. Em 2016, uma criança de apenas quatro anos teria sido abusada por Bernardino no município de Tiros. Diferentemente da maioria dos relatos, esse crime ainda não está prescrito. Foi essa revelação que reabriu o caso – e tudo começou com uma pista aparentemente simples.
A reportagem da Pública teve o ao depoimento de K.A.P., caseira no sítio do padre, onde teria ocorrido o suposto abuso à criança em 2016. Ela descreve o local com riqueza de detalhes: “eram vários quartos, muitos deles com várias camas, havia uma piscina. Tudo de muito bom gosto e caro.”
Encarregada de fazer a comida para os funcionários que iam trabalhar numa festa de um casamento que foi realizada no sítio em maio de 2016, K.A.P. recorda que, a pedido dela, padre Bernardino foi buscar mais carne na cidade de Tiros. “Ele se prontificou a ir e sugeriu levar uma criança para tomar sorvete, que era filha de uma mulher que me ajudava”, contou.
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A mãe da menina só permitiu que a filha acompanhasse Bernardino, justamente por saber que estaria sob os cuidados de um padre. O problema é que ao retornarem para o sítio, K.A.P. percebeu a menina segurando o sorvete muito calada e com o sorvete ainda escorregando pelas mãos.
Ela conta que a mãe levou a menina até o quarto para colocar uma roupa mais simples para que ela pudesse brincar e, que neste momento, percebeu que a filha havia chorado e apontou para as partes íntimas. Ao ser questionada sobre o motivo da tristeza, a criança relatou que o padre Bernardino teria colocado a boca dele em suas partes íntimas. A criança teria, inclusive, indicado à mãe o como foi o movimento realizado pelo padre durante o abuso. “A mãe me contou, ficamos sem ação e seguimos trabalhando. Anos depois, vimos que o mesmo padre estaria sendo acusado de abusos sexuais contra crianças e tudo veio à tona”, lembra K.A.P.
“LUZ E VIDA”
Com uma área equivalente a 27 campos de futebol, o sítio “Luz e Vida” em Tiros pertenceu ao padre Bernardino até 26 de novembro de 2021, quando a propriedade foi vendida de forma parcelada por R$ 1,6 milhão — das 4 parcelas de R$ 400 mil, a última venceu em 10 de janeiro de 2025. Como consta no relatório do inquérito policial, era “um local propício para ocorrência do crime atualmente investigado e que aconteceu na clandestinidade”.
No mesmo lugar, a filha de L.J.S.O., também teria sido abusada por Bernardino. “Minha filha só me contou quando já estava adulta. Fiquei chocada!”, relembra L.J.S.O., que percebeu que a filha à época estava mais calada, triste e que às vezes chorava. “Eu perguntava, mas ela não me dizia o que era”.
Teria sido durante uma excursão da escola no sítio do padre que a menina teria sido abusada dentro da piscina da propriedade. Segundo o relato da mãe, o padre teria ado as mãos nas partes íntimas da filha, em seguida a levado para um matagal onde ficou se esfregando sobre o corpo dela até que ela desmaiasse. “Nunca desconfiei que teria ‘pagado’ para um padre violentar minha filha! E o pior é saber que existiram adultos ali que foram, no mínimo, coniventes com isso”, afirma L.J.S.O.
Por envolver crianças e adolescente, o inquérito que apura as acusações contra o padre corre em segredo de justiça. Mas, em 2021, uma investigação paralela foi realizada pela Arquidiocese de Belo Horizonte, em que as vítimas teriam prestado depoimento a uma comissão estabelecida pela Igreja Católica, mas nenhuma denunciante ouvida pela reportagem recebeu cópia da declaração. O pedido para ter o à investigação também foi negado à reportagem.
Quando o padre Bernardino foi preso preventivamente em Juatuba, interior de Minas, em 23 de outubro de 2024, ele ficou um mês na penitenciária, conseguindo reverter a decisão para aguardar o julgamento em casa sob a alegação de que é diabético, idoso e sofre de depressão.
A advogada Ana Carolina Campos Oliveira, que defende as vítimas, afirma que, ao contrário do que se pode imaginar, a tornozeleira eletrônica que Bernardino é obrigado a usar não tem a função de mantê-lo afastado de crianças. Ao invés disso, ele está estritamente proibido de se aproximar das testemunhas do inquérito e da criança que ele abusou no sítio em 2016. Além dessas restrições, explica a advogada, Bernardino “leva uma vida normal”, cenário que para ela contrasta com a situação das inúmeras vítimas que vivem com o trauma, e daquelas que, incapazes de ar a violência sexual a que foram expostas, acabaram tirando suas próprias vidas, como será explicado adiante.
CRIMES PRESCRITOS
A maioria dos crimes denunciados contra o padre Bernardino prescreveu. A prescrição é o tempo que o estado tem para punir um crime. Depois desse prazo, o acusado não pode mais ser responsabilizado penalmente. Pela legislação brasileira o prazo de prescrição só começa a contar a partir do momento em que a vítima completa 18 anos, e não na data do crime. Mas, em quase todos havia o mesmo modus operandi. Para os investigadores do caso, o acusado faz uso da oportunidade, ou seja, aproveita-se de pequenos momentos para realizar os abusos sexuais, inclusive praticando os atos em ambientes próximos dos pais ou dos responsáveis pelas crianças. Em geral, ainda de acordo com os investigadores, padre Bernardino ficava com as vítimas o tempo suficiente para a satisfação sexual dele e não fazia uso de armas. Quanto à natureza dos atos não havia preferência pela conjunção carnal, embora tivesse praticado em alguns dos casos reiteradamente, aponta a investigação.
Os investigadores dizem que as vítimas eram, em maioria, meninas entre 3 e 11 anos de idade. E para atrair o contato com todas elas, Bernardino valia-se da função de líder religioso e diretor de escola infantil, o que lhe garantia o respeito dos pais e da comunidade.
Cibele Itaboray Frade, outra denunciante do padre, tenta desde nova ajuda para provar a violência que estava acontecendo dentro da Igreja. Ela contou que sofreu abusos sexuais entre 8 e 9 anos de idade. Cibele acompanha o o a o do caso em busca de justiça e de reparação.
“Fui abusada sexualmente pelo padre Bernardino logo após a missa. Era época de festividades na igreja e tinham barraquinhas espalhadas pela rua. A igreja estava em obras, em um determinado momento o padre me chamou para ajudá-lo em um quartinho onde ficam os materiais de construção. Meus pais permitiram. Chegando lá, ele trancou a porta e começou a dizer que estava sendo perseguido. Colocou um papelão no chão e mandou que eu me deitasse, veio por cima de mim e começou a se esfregar sobre meu corpo. Assim que ele sentiu prazer, parou e mandou que eu saísse como se nada tivesse acontecido.”
A mesma situação teria ocorrido em outra ocasião, ela disse. Um dia, ainda na infância, enquanto conversava com outras colegas da paróquia, a mãe de Cibele ouviu que as meninas falavam dos abusos sexuais que estariam sendo cometidos pelo padre. Cibele conta que a mãe procurou a arquidiocese e pediu reparação. No entanto, nada aconteceu.
Em relato à polícia registrado num boletim de ocorrência, Patrícia Salviano conta que decidiu denunciar Bernardino após ver o caso na televisão, em 2024. “Pensei que precisava falar porque talvez tenha sido a primeira, senão uma das primeiras meninas abusadas pelo padre”, explicou. Ela recordou que o crime ocorreu em 1975 quando tinha por volta dos 9 anos de idade, durante uma excursão escolar perto da Serra da Piedade. “Bernardino me chamou para ver um cavalo no meio do mato e, de repente, me jogou no chão. Lembro do peso dele sobre mim, dele ando a mão em meu corpo de forma inadequada. Eu usava um short e fiquei aterrorizada”, contou.
Patrícia fugiu para o ônibus, trocou de roupa, mas a dor do ocorrido a marcou profundamente. Na época, Bernardino ainda era seminarista e professor. Foi só em 11 de novembro de 1977 que, de acordo com registros da arquidiocese, Bernardino dos Santos foi ordenado padre.
Outra denunciante, Carine Diniz, hoje é advogada e conta que seguia à risca o que era determinado pela igreja, quando criança. Ainda guarda o certificado do batismo, assinado por Bernardino, que abusou sexualmente dela pouco tempo depois.
“Me tornei coroinha e foi nessa época que ele começou a se aproximar de mim. Tinha cerca de 9 anos de idade. Antes da missa, dentro da sacristia, o padre ava as mãos em meu corpo, especialmente nos meus seios que estavam começando a crescer. Isso aconteceu inúmeras vezes.”
Para Carine, esses abusos aconteciam como uma forma de punição já que os pais dela acreditavam numa forma diferente de atuação da Igreja Católica, o que incomodava o padre. “Teve uma vez que ele fez uma festa na casa paroquial em que só participaram as coroinhas beges e vermelhas – preferidas dele! E todas elas, inclusive eu, fomos abusadas. No meu caso não houve penetração, mas o que ele fazia já era por si só uma violência absurda.”
Segundo os investigadores, em depoimento à polícia em 2024, padre Bernardino confirmou que era dono do sítio em Tiros e que o terreno foi vendido em 2021. Mas, negou que fossem realizadas excursões escolares para o local. O que é confrontado pela mãe de uma das vítimas. Leda Juliana conta que além de pagar pelas mensalidades da filha ainda pagava pelas excursões e que numa delas a filha teria sido violentada pelo padre Bernardino, que havia batizado a menina quatro anos antes do abuso no sítio.