Segurança pública

Parceria internacional viabiliza uso social de dinheiro arrecadado com bens do tráfico

Governo federal firmou acordo com a Colômbia e a União Europeia para investir em políticas públicas o dinheiro arrecadado com itens apreendidos do narcotráfico. Somente este ano, leilões renderam cerca de R$ 38,8 milhões

Os ativos captados do tráfico de drogas e leiloados no ano ado representam R$ 95 milhões (cerca de 71,3% do total). Foram 393 leilões, totalizando 4.136 ativos leiloados

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Os ativos captados do tráfico de drogas e leiloados no ano ado representam R$ 95 milhões (cerca de 71,3% do total). Foram 393 leilões, totalizando 4.136 ativos leiloados - (crédito: Divulgação/PF )

No início do mês, o Brasil firmou um acordo com a Colômbia e a União Europeia que visa regularizar a destinação social de bens apreendidos do narcotráfico. Dados da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad) mostram que, desde o início do ano, até a última sexta-feira, leilões de ativos do crime organizado — uma das possíveis destinações dos bens apreendidos — renderam R$ 51,3 milhões para o país, sendo R$ 38,8 milhões apenas do leilão de itens interceptados do tráfico de drogas.

A Senad é o braço do Ministério da Justiça e Segurança Pública responsável pela gestão de ativos em âmbito nacional e com competência para alienar — vender ou dar outra destinação — ativos apreendidos ou perdidos em favor da União, em razão de qualquer crime. O objetivo geral é fortalecer a recuperação de bens e valores provenientes de práticas criminosas, descapitalizar as organizações criminosas e reforçar políticas públicas, especialmente as de segurança e prevenção.

O de Bens Leiloados da Senad mostra que, em 2024, foram realizados 457 leilões, com um total de 5.034 ativos do crime leiloados, arrecadando um valor total de R$ 133,3 milhões. Além do tráfico de drogas, o sistema considera apreensões de crimes ambientais, corrupção, lavagem de dinheiro e outros crimes de competência da Justiça Federal — sem especificar quais.

Assim como os cinco primeiros meses de 2025 indicam, os ativos captados do tráfico de drogas e leiloados no ano ado representam R$ 95 milhões (cerca de 71,3% do total). Foram 393 leilões, totalizando 4.136 ativos leiloados.

grafico cirmes leiloes
grafico cirmes leiloes (foto: pacifico)

Especialistas ouvidos pelo Correio afirmam que a melhor forma de combater essas organizações é atacando diretamente seu poder financeiro. A descapitalização é positiva por retirar do criminoso o proveito econômico, desestimula a permanência na criminalidade e retira dos agentes ilícitos o capital que seria reinvestido no crime. "Hoje em dia, tudo que se sabe sobre o enfrentamento ao crime organizado mostra que a forma mais eficiente de impactar essas organizações é pela descapitalização", ressalta Marta Machado, titular da Senad.

Marta explica que os valores arrecadados por meio desses leilões devem ser utilizados para reinvestir em políticas públicas. A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) prevê que os recursos confiscados ou provenientes da alienação de bens decorrentes dos crimes nela previstos são destinados ao Funad. Em casos de lavagem de dinheiro, os recursos podem ser direcionados ao Fundo de Aparelhamento da Polícia Federal (Funapol), e outros crimes podem ter as arrecadações encaminhadas ao Fundo Penitenciário Nacional (Funpen).

A secretária enfatiza que essa gestão de ativos e o retorno dos recursos para fundos públicos fazem parte do que ela chama de "ciclo virtuoso". Como representante do MJSP e, principalmente do Brasil, no acordo com a Colômbia e a União Europeia, ela também menciona a destinação social de bens apreendidos pelo crime e explica que, atualmente, a legislação permite a destinação de determinados bens às forças policiais.

"Ciclo virtuoso"

A Senad pode realizar transferências voluntárias de até 40% do valor arrecadado às forças policiais que fizeram a apreensão dos bens perdidos em casos de tráfico de drogas, para projetos voltados ao aparelhamento e capacitação dessas polícias. A servidora do MJSP explica que, para isso, a polícia apreensora procura a secretaria e apresenta projetos voltados à qualificação no enfrentamento ao narcotráfico. Esses projetos são financiados com essa porcentagem dos bens.

"Então, nesse caso, a gente recebe uma demanda, pode ser da PF (Polícia Federal), pode ser da PRF (Polícia Rodoviária Federal), mas também pode ser da Secretaria de Segurança Pública dos estados. Uma demanda específica por aquele determinado bem. A gente analisa o pedido, vê se faz sentido ou não, e aí fazemos a destinação social", detalha, destacando que a destinação social é uma maneira de comunicar à sociedade que, acima de tudo, o crime não compensa. A titular da Senad define essa estratégia como "uma política que faz a sociedade sentir que o crime está sendo enfrentado e que o dinheiro tem retorno", além de ser "uma política de reforço simbólico das instituições".

Impacto social

O procurador da República e coordenador do grupo de trabalho de recuperação patrimonial do Ministério Público Federal (MPF), Tiago Misael, concorda com Marta Machado. Ele explica que a estratégia de atacar o patrimônio criminoso não é nova, e que isso tem que ser uma política pública, não só do Ministério Público, mas das polícias, "da criação de uma cultura de recuperação de ativos no Brasil".

"É possível tanto buscar a responsabilização dos agentes com medidas de prisão, por exemplo, quanto retirar o patrimônio criminoso da disponibilidade desses agentes. Fazer com isso que o crime não compense. A descapitalização é fundamental. Ela retira do agente o proveito econômico, desestimula a permanência na criminalidade e, principalmente, retira dos agentes o capital que seria reinvestido no crime", frisa o procurador.

Desafios

Misael lamenta, porém, a baixa profissionalização na área. Ele afirma que o Brasil não possui uma "cultura de persecução patrimonial", apesar de ações do MPF, como a criação de grupos de pesquisa patrimonial e, recentemente, as polícias Federal e Civil desenvolvendo a Unidade de Recuperação de Ativos, reunidas ao redor da Rede Recupera — segundo o MJSP, uma instância de articulação institucional para fins de identificação, apreensão, istração, alienação e destinação de ativos relacionados à prática ou ao financiamento de infração penal.

Ele lembra que, até 2023, o Poder Executivo não possuía uma política pública de recuperação de ativos. A partir de estudos feitos em julho daquele ano, em dezembro foi lançado um relatório mapeando as dificuldades e, só em fevereiro de 2025, foi publicada uma portaria ministerial estabelecendo a Política Nacional de Recuperação de Ativos.

Além disso, o procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), Roberto Livianu, critica o fato de promotores preocuparem-se, fundamentalmente, com a autoria e materialidade do crime. Ele explica que as questões ligadas ao produto do crime — como dinheiro ligado ao crime organizado — "não são, normalmente, o foco do dia a dia do Ministério Público" e diz que a rotina do MP é lidar com crimes comuns e cotidianos.

Para Livianu, é necessária uma reestruturação do processo penal brasileiro, porque, segundo ele, o crime organizado age de forma empresarial. Se observarmos a legislação, segundo o servidor, é possível ver que a recuperação do dinheiro do crime aparece como um efeito secundário da condenação.

"Eu me lembro de um processo recente em que dei parecer, e ficou muito claro que o que chega à Justiça é o que deu errado para o criminoso, seja porque houve algum azar, seja porque a polícia chegou na hora certa. Para os criminosos, é uma profissão mesmo: eles se organizam, estruturam e operam com lógica empresarial. E nós estamos sempre correndo atrás."

*Estagiário sob a supervisão de Andreia Castro


postado em 09/06/2025 05:00
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